Não conhecia nada desta escritora juizforana. Gostei desta crônica de Cosette de Alencar intitulada:
EM FLOR
Domingo último deu granja. Ah, estava bom, na granja, no último domingo. É que eu adoro maio no campo. Me dá uma embriaguez, parece que fico bêbada de azul, de sol, de cheiro de mato, de silêncio tranqüilo, a vida perde peso, é leve, é doce, é meiga, vale a pena viver só por viver, sem problema algum, sem nenhuma preocupação, e que vale o dinheiro, e que vale a glória, e que significa o poder? Glória é estar vivo, sentir o sol escorrendo pela pele, ouvir o canto dos pássaros - e a gente se sente maior que Nabucodonosor, sabe que é maior do que ele, hoje só um nome, e o que é um nome? Nome não vale nada, nome não é nada, o que importa é o sangue fluindo nas veias, os olhos que enxergam coisas, os ouvidos que escutam, o paladar, como as primeiras laranjas parecem doces, como parecem doces, como parecem finos e sutis os primeiros perfumes de maio em flor! Ah! Eu adoro tudo isto, isto é que é viver mesmo. Tem o resto, é claro, mas não conta nesta hora de sol.
De certo que, depois, virá a noite, e nem tudo será estrela fria no céu negro: virão as parcelas de somar, os prejuízos, as perdas... Mas que perda, que prejuízo, enquanto se está vivo? Um maio depois de outro, é fortuna garantida. Nem me aborreci com o preço do caminhão de esterco. Caro, sim, mas rosas não florescem sem este adubo e é dele que virão as folhas tenras de alface, os cachos de pimentão, os tubérculos túmidos da cenoura, a vagem tenra, a abobrinha verde... Falei para o Bebeto cuidar da horta, do jardim cuido eu: e plantei um canteiro de antúrios, a título de experiência. Encontrei a tartaruga dormindo ao sol, presa na gaiola grande, um pequeno viveiro: solta ela destrói a granja tranqüilamente, como já me destruiu em casa, na cidade, o jardim todo. Que voracidade! Não penso que esteja infeliz, o Bebeto tem pena dos bichos, trata bem deles, lá se entendem. Disse-me que está dando goiaba às galinhas, parece que elas gostam. Por mim, pode dar. Em matéria de ovo, continuamos na estaca zero: com o galinheiro renovado, a situação não mudou. Diz o crioulo que não é tempo de ovo, nem eu sei quando será. Pelo visto, nunca. Mas não vou fundir a cuca, agora vou pensar em um casal de coelhos: para fazer companhia ao casal de patos, decididamente estéril. Bonito está ele, gordo e forte: só que não procria. Deixo para lá. Aliás, tudo que é problema afasto com um encolher de ombros.
Quero só o prazer, a alegria das rosas, as laranjas amadurecendo lentamente, e as árvores que eu mesma plantei e que lá vão em frente. Até os pés de mamão: crescem, crescem, já estão mais altos do que eu. Tudo, em se plantando, germina: e há de frutificar. Tão ambiciosa não sou que espero colher eu mesma do que estou plantando: basta-me a alegria de ver as mudas pequenas irem se transformando em arbustos delicados; serão um dia árvores gloriosas. Belo, belo. Que mais posso querer? Por mim, tinha os viveiros cheios de pássaros: aliás, o Bebeto sabe como aprisiona-los. Mas meu irmão Fernando, quando por lá aparece, abre as portas das gaiolas, não suporta asas prisioneiras. O crioulo, desta forma, desanimou de armadilhas para os passarinhos. Não me meto nisto, deixo pra lá. Penso que, bem tratados, os bichinhos talvez sejam felizes na prisão. Mas não sei. Haverá algo que substitua a liberdade? Sei lá. Eu mesma sou livre, algum dia fui livre? Acho que não, ninguém é livre, a liberdade é um mito. De que tempo disponho eu, para meu uso e privilégio?
Estou sempre com excesso de afazeres, quando me apanho com a saúde em equilíbrio não dou conta; a biblioteca anda em desordem, preciso arrumá-la, os livros andam empilhados por todos os cantos, nem mesmo tenho mais tempo de abri-los, é livro demais, mas como? O tempo não dá. Nem pretendo esquentar a cabeça com isso: depois de mim, alguém virá. Ou não virá pouco me importa. Sinto-me curiosamente desligada de tudo, o futuro não me preocupa, nem o destino das coisas: curta é a vida, e só temos maio uma vez por ano. O negócio é aproveitar, tirar o máximo desta riqueza enorme: dias claros, flores, céu azul. Grandes bens, bens insubstituíveis.
EM FLOR
Domingo último deu granja. Ah, estava bom, na granja, no último domingo. É que eu adoro maio no campo. Me dá uma embriaguez, parece que fico bêbada de azul, de sol, de cheiro de mato, de silêncio tranqüilo, a vida perde peso, é leve, é doce, é meiga, vale a pena viver só por viver, sem problema algum, sem nenhuma preocupação, e que vale o dinheiro, e que vale a glória, e que significa o poder? Glória é estar vivo, sentir o sol escorrendo pela pele, ouvir o canto dos pássaros - e a gente se sente maior que Nabucodonosor, sabe que é maior do que ele, hoje só um nome, e o que é um nome? Nome não vale nada, nome não é nada, o que importa é o sangue fluindo nas veias, os olhos que enxergam coisas, os ouvidos que escutam, o paladar, como as primeiras laranjas parecem doces, como parecem doces, como parecem finos e sutis os primeiros perfumes de maio em flor! Ah! Eu adoro tudo isto, isto é que é viver mesmo. Tem o resto, é claro, mas não conta nesta hora de sol.
De certo que, depois, virá a noite, e nem tudo será estrela fria no céu negro: virão as parcelas de somar, os prejuízos, as perdas... Mas que perda, que prejuízo, enquanto se está vivo? Um maio depois de outro, é fortuna garantida. Nem me aborreci com o preço do caminhão de esterco. Caro, sim, mas rosas não florescem sem este adubo e é dele que virão as folhas tenras de alface, os cachos de pimentão, os tubérculos túmidos da cenoura, a vagem tenra, a abobrinha verde... Falei para o Bebeto cuidar da horta, do jardim cuido eu: e plantei um canteiro de antúrios, a título de experiência. Encontrei a tartaruga dormindo ao sol, presa na gaiola grande, um pequeno viveiro: solta ela destrói a granja tranqüilamente, como já me destruiu em casa, na cidade, o jardim todo. Que voracidade! Não penso que esteja infeliz, o Bebeto tem pena dos bichos, trata bem deles, lá se entendem. Disse-me que está dando goiaba às galinhas, parece que elas gostam. Por mim, pode dar. Em matéria de ovo, continuamos na estaca zero: com o galinheiro renovado, a situação não mudou. Diz o crioulo que não é tempo de ovo, nem eu sei quando será. Pelo visto, nunca. Mas não vou fundir a cuca, agora vou pensar em um casal de coelhos: para fazer companhia ao casal de patos, decididamente estéril. Bonito está ele, gordo e forte: só que não procria. Deixo para lá. Aliás, tudo que é problema afasto com um encolher de ombros.
Quero só o prazer, a alegria das rosas, as laranjas amadurecendo lentamente, e as árvores que eu mesma plantei e que lá vão em frente. Até os pés de mamão: crescem, crescem, já estão mais altos do que eu. Tudo, em se plantando, germina: e há de frutificar. Tão ambiciosa não sou que espero colher eu mesma do que estou plantando: basta-me a alegria de ver as mudas pequenas irem se transformando em arbustos delicados; serão um dia árvores gloriosas. Belo, belo. Que mais posso querer? Por mim, tinha os viveiros cheios de pássaros: aliás, o Bebeto sabe como aprisiona-los. Mas meu irmão Fernando, quando por lá aparece, abre as portas das gaiolas, não suporta asas prisioneiras. O crioulo, desta forma, desanimou de armadilhas para os passarinhos. Não me meto nisto, deixo pra lá. Penso que, bem tratados, os bichinhos talvez sejam felizes na prisão. Mas não sei. Haverá algo que substitua a liberdade? Sei lá. Eu mesma sou livre, algum dia fui livre? Acho que não, ninguém é livre, a liberdade é um mito. De que tempo disponho eu, para meu uso e privilégio?
Estou sempre com excesso de afazeres, quando me apanho com a saúde em equilíbrio não dou conta; a biblioteca anda em desordem, preciso arrumá-la, os livros andam empilhados por todos os cantos, nem mesmo tenho mais tempo de abri-los, é livro demais, mas como? O tempo não dá. Nem pretendo esquentar a cabeça com isso: depois de mim, alguém virá. Ou não virá pouco me importa. Sinto-me curiosamente desligada de tudo, o futuro não me preocupa, nem o destino das coisas: curta é a vida, e só temos maio uma vez por ano. O negócio é aproveitar, tirar o máximo desta riqueza enorme: dias claros, flores, céu azul. Grandes bens, bens insubstituíveis.
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